Por uma imagem não distorcida do trabalho do Cientista: Contribuições da História e Filosofia da Ciência para o Ensino da Radioatividade

ISBN 978-85-85905-21-7

Área

Ensino de Química

Autores

Guimarães, L. (IFRJ) ; Castro, D. (IFRJ)

Resumo

Este trabalho busca relatar uma sequência didática para o tema da radioatividade através da História da Ciência. As estratégias utilizadas foram:roda de conversa, análise de textos, experimentação e debate. A intervenção busca tratar dos estudos envolvendo a radioatividade e o contexto histórico do período entre Henri Becquerel e Marie Curie. O principal objetivo é mostrar aos alunos que a ciência não está pronta pois se constrói coletivamente. As questões respondidas pelos educandos apontam um melhor entendimento do trabalho do cientista, não o considerando socialmente neutro e alheio ao mundo.Os resultados mostraram que os conhecimentos científicos foram assimilados de forma gradativa e que as metodologias utilizadas propiciaram uma interlocução de saberes.

Palavras chaves

História da Química; Ensino de Quimica; Radioatividade

Introdução

Dentre as possibilidades no ensino de ciências, esse trabalho utilizará a vertente do uso crítico da História da Ciência, que permite ao aluno a percepção da construção do conhecimento e do progresso científico. (PEDUZZI,2005). A História da Ciência pode fornecer muitas contribuições para o ensino/aprendizagem da Química. Podemos afirmar que além de contextualizar o ensino de ciências, analisar a História da Química (...) pode fornecer aos estudantes uma oportunidade de aprender a questionar e buscar a melhor compreensão dos processos sociais, econômicos e culturais passados e contemporâneos. (BRASIL,2006). Nesse sentido, procura-se um ensino de ciências que vise a diminuir a fragmentação de conteúdo e conhecimento que são dados em sala de aula, fato constantemente encontrado, inserindo-a num contexto de maior amplitude. Martins (2001), reforça que o ensino da História e da Filosofia da Ciência (HFC), vêm se tornando objeto de inúmeras pesquisas por parte de historiadores, filósofos e educadores em ciência, as quais, quase sempre, culminam em dissertações de mestrado e teses de doutorado. Contudo, como relata Silva (2010), os resultados de intervenções didáticas com a HFC em sala de aula ainda são escassos. Silva (2010) e Forato (2009), apontam que construir estratégias didáticas valendo-se de elementos da HFC não é algo fácil. O professor que está no processo de construção de tais estratégias pode recorrer a textos da história da ciência anacrônicas e distorcidas, passando uma visão de ciência totalmente equivocada. Por isso, é de suma importância que o educador não somente consiga reconhecer um bom texto histórico e, mas também detenha os procedimentos e métodos de aplicação, que nesse caso é o mais importante para diferenciar o ensino, enxergando as suas potencialidades e dificuldades de aplicá-lo em sala de aula. Daniel Gil-Perez et al (2001) realizaram um trabalho de pesquisa e nos colocaram algumas visões distorcidas acerca do trabalho científico que professores dos diferentes níveis de ensino transmitem, mesmo que seja de forma inconsciente. Dentre as visões destacadas, abordaremos nesse trabalho as visões aproblemática e ahistórica, fora de contexto, proporcionando uma imagem do cientista como um ser alheio ao mundo e à necessidade de fazer opções. Os mesmos autores apontam para o que seriam características essenciais do trabalho científico, dentre elas, o reconhecimento do caráter social do desenvolvimento científico. Assim, essa estratégia didática terá como objetivo uma sequência de atividades que evidenciem ao aluno que o trabalho do cientista está inserido em um contexto social e esse, influencia diretamente na sua pesquisa. Utilizaremos um “recorte” histórico do desenvolvimento da radioatividade abordando principalmente Henri Becquerel e Marie Curie, muito baseada no trabalho de pesquisa de Ediana Barp com o título: “Contribuições da História da Ciência para o Ensino da Química: Uma Proposta para Trabalhar o Tópico Radioatividade”. Essa intervenção didática se justifica de acordo com a Base Nacional Curricular Comum que afirma: “Nessa perspectiva (...) por meio de um olhar articulado de diversos campos do saber, precisa assegurar aos alunos do ensino fundamental o acesso à diversidade de conhecimentos científicos produzidos ao longo da história (...)” (p.273) Assim, se buscamos uma mudança nas salas de aula, onde os alunos não construam apenas conhecimentos científicos sem nenhum sentido para seu cotidiano e desordenados, mas que discutam várias dimensões cognitivas e intelectuais, técnicas, pessoais e sociais da atividade científica, novas práticas, nessa direção, devem ser pensadas e aplicadas em sala de aula. Diante de tal conflito, essa estratégia didática voltada para uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA) busca inserir essas práticas no contexto da escola e na realidade brasileira. Tendo como ponto de partida a visão aproblemática e ahistórica que vários alunos têm, com ênfase na radioatividade e no trabalho de Henri Becquerel e Marie Curie, elaboramos uma sequência de atividades de caráter histórico e filosófico com intervenções que envolvem como: rodas de conversas, experimentação e análise de textos.

Material e métodos

A sequência didática foi fundamentada nos seguintes eixos:(1) a realização de uma roda de conversa e de um experimento, que tinha por finalidade mapear algumas concepções alternativas dos alunos sobre o assunto a ser estudado, no caso, a concepção do trabalho científico, (2) o trabalho com os textos históricos, (3) um debate em sala de aula, em que chamamos de “diálogo” entre os dois textos. O primeiro encontro, que teve duração de 3 horas, foi uma roda de conversa, nesta, procurou-se investigar o que aluno sabe sobre a radioatividade, através de questionamentos como: A radioatividade é uma coisa boa ou ruim? Quem descobriu a radioatividade? Com duração de 2 horas, foi realizado o experimento sobre fluorescência e fosforescência com materiais alternativos encontrados no livro “Química em Questão “de Alfredo Luís Matheus, com o objetivo de levar ao aluno a sensação da emissão radioativa da maioria dos elementos químicos, já que muitos associam a radiação com brilho. A partir do terceiro encontro, foram utilizados dois textos, foi trabalhado nesses encontros o texto do historiador da física, Professor Roberto Andrade Martins, que trata da descoberta da radioatividade e do contexto histórico do período e conheceram um pouco da Marie Curie, suas dificuldades encontradas na época e sua pesquisa no que diz respeito ao avanço da radioatividade, nessa aula será usado o texto disponível no livro “As cientistas: 50 mulheres que mudaram o mundo” de Rachel Ignotofsky. Serão utilizados os dois textos na última aula já que esses foram preparados para um complementar o outro e dar a ideia de que a ciência é uma construção humana e coletiva. Seguindo a estratégia de Silva (2011) em que primeiro ocorre a pré-leitura nesse momento os alunos, com os textos em mão, realizaram uma leitura inicial, e fazem um resumo. Nesse resumo, era comum o aluno apontar tanto dúvidas sobre o conteúdo estudado quanto dificuldades de leitura relacionadas aos termos do texto histórico. Em sala de aula, foi disponibilizada uma aula, aproximadamente de 2 horas, para os alunos lerem novamente os textos e discutirem entre si sobre o episódio histórico estudado, mas dessa vez, em duplas. Novamente os alunos fizeram um resumo. Na última etapa de leitura dos textos, agora com as questões, os alunos tinham mais uma aula para resolverem. No fechamento, o professor realizava discussões sobre temas relevantes e dúvidas observadas pelos alunos nos textos estudados. A avaliação da intervenção didática foi qualitativa, com o interesse dirigido nos processos e produtos centrados no sujeito, em que foram averiguados seus comportamentos e percepções. Foram utilizadas três técnicas de coleta de dados ou materiais: a observação livre, feita nas aulas,o conjunto de questões e o diário de bordo.

Resultado e discussão

A estratégia didática foi aplicada em uma turma do 4º ciclo, esse ciclo na modalidade da Educação de Jovens e Adultos(EJA), corresponde ao 8º e 9º ano de escolaridade, foi realizado no turno noturno de uma escola pública do município de Volta Redonda-RJ. Foi desenvolvido essa sequência didática com cerca de 15 alunos entre 15 a 52 anos.Com a aplicação das questões iniciais, na roda de conversa, percebeu-se que os alunos, ao explicar o trabalho do cientista, apresentaram respostas que mostravam o cientista como sendo um profissional alheio ao mundo e sem opção de escolhas. Através dos relatos iniciais obtidos nas rodas de conversa, os estudantes reconheceram que até os cientistas tendem a detectar o que foi anteriormente previsto e, por vezes, deixam de lado aquilo que vai contra sua previsão inicial. A pretensão inicial desse trabalho, era apenas que o aluno apreendesse o real papel do trabalho do cientista, abandonasse a visão deformada de Ciência aproblemática e ahistórica, que está pronta e acabada e que a experimentação serve apenas para fins de comprovação. Sob este aspecto, o trabalho com os alunos foi muito bem sucedido. Antes da leitura dos textos, foi feito com os alunos um experimento mostrando a diferença entre a fosforescência e a fluorescência e para isso, foi utilizado um adesivo fosforescente e os alunos observaram sua luminescência no escuro e também foi levado para a sala de aula uma lâmpada de luz negra, sabão em pó e uma nota de 5 reais mais nova para ser iluminada e observar o fenômeno de fluorescência. Durante o experimento da fluorescência, os alunos perceberam que o sabão em pó brilhava de uma forma diferente e encantadora como foi definido por um aluno, mas também alguns deles observaram que a roupa branca brilhava, mostrando assim que nem tudo que é fluorescente e fosforescente seria radioativo e esse fenômeno não pode ser relacionado tão somente ao brilho de alguns materiais radioativos. Depois do trabalho com os textos, foi realizado um questionamento sobre a fluorescência e a fosforescência relacionando esse brilho com ponteiros de um relógio que brilha no escuro, e foi constatado assim que a maioria dos alunos conseguiram assimilar a diferença entre esses dois conceitos. A seguir são citadas algumas respostas quando perguntados sobre a questão do texto que dizia: "O volume de trabalhos sobre o assunto naquele período era muito grande. Dessa forma, poderíamos atribuir a descoberta da radioatividade a Becquerel?":"Não. (...)Ele fez modificações nas descobertas de outros cientistas.”; “Não foi somente ele que descobriu a radioatividade e sim todos os cientistas.";" (...)Outras pessoas já estavam estudando";"(...)porque era um assunto que já havia anos de estudos por outros cientistas." Em outro questionamento sobre as diferenças dos trabalhos de Marie Curie e Becquerel os estudantes responderam:"(...)foi adiante.";"(...)Ela foi mais a fundo(...)";" (...)examinou esses exemplos brilhantes bem mais a fundo(...)". O texto que foi trabalhado em sala de como Becquerel não descobriu a radioatividade foi muito mais além do que inicialmente foi planejado, a partir das respostas obtidas nas questões, e no diálogo desenvolvido entre os textos, no último momento, ficou claro para os alunos a importância do suposto “fracasso” dos trabalhos de Becquerel, pois a partir deles é que Marie Curie iniciou seus estudos para assim “alcunhar” o termo: radioatividade” e entender o fenômeno de emissão de luz, pois sem as limitações dos trabalhos dele, Marie Curie não teria espaço para pesquisar sobre o assunto, como podemos perceber nas respostas da questão sobre a importância do "fracasso" de Becquerel:" (...)Marie Curie pode se destacar apesar de ser mulher(...)";"(...)Marie e Pierre levaram para um aprofundamento dos estudos(...)";"(...)Desencadeou a curiosidade da polonesa Marie Curie e seu esposo Pierre(...)";"(...)Se ele não tivesse fracassado eu não ia saber que Marie existia, e ela não teria ganhado o prêmio Nobel de Física e de Química.”. Se Marie Curie viu algo além de Becquerel foi por ter se apoiado naquilo que já existia sobre o assunto. Além disso, este é um excelente exemplo, pois conseguimos que os alunos abandonassem a seguinte visão: “Os grandes cientistas do passado não se enganavam e já tinham chegado exatamente às ideias que nós aceitamos hoje em dia.”. Nos relatos, obtidos principalmente das observações livres, é possível perceber que os alunos compreenderam que existia um grande volume de trabalhos sobre o assunto naquele período, que a descoberta da radioatividade poderia ter sido atribuída a qualquer outro cientista que foi citado nos textos. Sendo assim, trabalhamos com os alunos que a radioatividade é um fenômeno natural que foi observado e compreendido e só mais tarde teríamos a radioatividade artificial, já que inicialmente havia a percepção da radioatividade ser algo "fabricado”. Esta atividade, além de colaborar no trabalho da divulgação do progresso científico em um contexto histórico, estimulou uma postura proativa dos alunos ao terem que pesquisar, debater e serem questionados, sobre o trabalho do cientista e as dificuldades encontradas pelo contexto histórico em que estavam inseridos no momento em que viveram. É importante salientar sobre o interesse pela vida da cientista Marie Curie. Os alunos desenvolveram grande admiração por ela devido à sua genialidade e às dificuldades enfrentadas no meio social e científico.

Conclusões

A intervenção didática mostrou-se ter uma aplicabilidade muito simples, o que favorece o seu uso por diferentes professores em diferentes realidades, entretanto, isto não significa que esta aula seja um modelo sem nenhum tipo de falha, em uma sala de aula, a heterogeneidade é característica, ou seja, os pensamentos e as metodologias são diversas. A partir dessa intervenção didática, apresentamos o tópico radioatividade, utilizando um recorte histórico de alguns cientistas em um período como um elemento motivador do processo de ensino/aprendizagem e, além disso, foi possível contribuir para que os estudantes pudessem ter a oportunidade de repensarem o conhecimento científico e assim, pudessem apresentar uma visão mais coerente sobre o trabalho do cientista, retirando-o de uma visão deformada que se apresenta aproblemática e ahistórica. Nessa perspectiva, as estratégias didáticas utilizadas conseguiram alcançar o que foi inicialmente pretendido com o objetivo, pois a proposta foi muito bem aceita pelos alunos pois os próprios alunos reconheceram que até mesmo os cientistas tendem a observar o que foi previsto e, por vezes, ignoram aquilo que contraria sua previsão inicial. A estratégia didática favoreceu a humanização do ambiente escolar, o trabalho em grupo, o diálogo entre os estudantes, a socialização das concepções alternativas referentes aos assuntos estudados, inclusive identificando semelhanças com visões históricas, a problematização, a argumentação, o trabalho com hipóteses, a comunicação em Química e, por fim, a aprendizagem de conceitos e temas científicos. Respeitando e levando em consideração as diferentes realidades existentes nas diferentes escolas e regiões do país, devemos considerar é que para essa turma de alunos e para a realidade da escola em que a proposta foi aplicada, os resultados foram muito satisfatórios.

Agradecimentos

Agradeço ao professor Dr Jorge Messeder e a Professora Doutora Denise Leal por todo cuidado docente que foi colocado nesse trabalho.

Referências

BARP, E. Contribuições da História da Ciência para o Ensino da Química: Uma Proposta para Trabalhar o Tópico Radioatividade. Revista História da Ciência e Ensino: Construindo Interfaces, São Paulo Volume 8, pp. 50-67,2003.
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FORATO, T. C. M. A natureza da ciência como saber escolar: um estudo caso a partir da história da luz. Tese (Doutorado em Educação). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
GIL PÉREZ, Daniel et al. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, v. 7, n. 2, p. 25-153, 2001.
IGNOTOFSKY, R. As Cientistas: 50 mulheres que mudaram o mundo, tradução de Sônia Augusto - São Paulo: Blucher, 2017.
MARTINS, R. A. História e História da Ciência: encontros e desencontros. In: Actas do 1º Congresso Luso-Brasileiro de História da Ciência e da Técnica. Évora: Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Évora, 2001.
________________., Como Becquerel não descobriu a radioatividade, Caderno Catarinense do Ensino de Física. 7,Florianóplois, nº especial (jun. 1990): 27-45.
MATHEUS, A. L. Química em questão, 1ª ed. São Paulo: Claro Enigma; Rio de Janeiro: Editora Fio Cruz, 2012.
PEDUZZI, L. O. Q.; Sobre a utilização didática da História da Ciência. In:PIETROCOLA, M. (Org). Ensino de física: conteúdo, metodologia e epistemologia em uma concepção integrada. 2.ed., Florianópolis, Ed. Da UFSC, pp. 151-170, 2005.
SILVA, B. V. C. Controvérsias sobre a natureza da luz: uma aplicação didática. Dissertação de Mestrado. Tese (Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2010.
_________________.; História e Filosofia da Ciência como subsídio para elaborar estratégias didáticas em sala de aula: um relato de experiência em sala de aula. Revista Ciências & Ideias, Rio de Janeiro, Volume 3, N.2 - Outubro/2011-Março/2012

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