Autores

Regiani, A.M. (UFSC) ; Signor, M.O. (UFSC) ; Nóbrega, D.S. (IFAC)

Resumo

A partir de breve descrição analítica das realidades de duas Resex: Chico Mendes e Marinha Pirajubaé argumenta-se que o ensino de química quando articulado às questões sociais e culturais vividas por determinado grupo de pessoas é o motor de mudança do grupo social por permitir a formação de cidadãos críticos e conscientes de seu papel na sociedade.

Palavras chaves

Resex; conhecimento tradicional; educação humanística

Introdução

O conhecimento tradicional é considerado como um conjunto de saberes, ou seja, é o saber-fazer a respeito do mundo natural, transmitido oralmente de geração em geração a partir das realidades experimentadas por um grupo de indivíduos (DIEGUES e ARRUDA, 2001). Chassot (2008) argumenta que são aqueles saberes dos primeiros tempos, saber inicial ou primevo. Ou seja, são saberes que têm a sua origem na vivência cultural e nas experiências sociais em um determinado grupo de pessoas. Para Feyerabend (2011), “pelo mundo todo, as pessoas desenvolveram maneiras de sobreviver em ambientes em parte perigosos, em parte agradáveis. As histórias que contaram e as atividades que se ocuparam enriqueceram sua vida” (p. 22). Para esse autor, abordagens não ligadas a instituições científicas, por terem valor, são usadas por cientistas em suas pesquisas. Assim, baseando- se nos padrões aceitos (método científico) conclui que “tudo vale” (FEYERABEND, 2011, p.37). Para Damasio e Peduzzi (2017), o “tudo vale” “não é o único princípio de uma nova metodologia recomendada por Feyerabend” nem “o princípio de sua epistemologia” (p.12). Esses autores argumentam que, para o epistemólogo, “não existe um método único de fazer ciência e os que existem podem ser melhorados com o intercâmbio de outras tradições” (DAMASIO e PEDUZZI, 2017, p. 15). O reflexo desta percepção na educação pressupõe que, para uma educação científica humanista, o ensino de ciências deveria contribuir com a formação da consciência crítica, que faz do ser humano “um ser capaz de intervir no mundo e não só de a ele se adaptar” (FREIRE, 2011, p.20). Desta forma, a ciência deveria ser ensinada não como o único caminho para a verdade e a realidade, mas como uma visão de mundo que corrobora com a emancipação de um grupo social. Mediante o exposto, com o objetivo de expor resultados de intervenções que contribuíram com o ensino de química problematizador mediante o contexto vivido por determinado grupo de pessoas, é feita uma breve descrição analítica das realidades de duas Reservas Extrativistas: Resex Chico Mendes, Acre, e Resex Marinha Pirajubaé, Santa Catarina.

Material e métodos

Para conhecer as realidades das duas reservas extrativistas foram realizadas pesquisas de campo de cunho etnográfico. Em cada reserva foram realizadas visitas guiadas com coleta de dados: fotos, depoimentos (gravados e transcritos) e anotações no diário do pesquisador em um processo inspirado no que Freire denomina “investigação temática” (FREIRE, 2005, p. 115). Posteriormente, foram desenvolvidos planos de ensino considerando as realidades locais e baseados na metodologia dos três momentos pedagógicos (DELIZOICOV et al, 2009).

Resultado e discussão

A Reserva Extrativista (Resex) é definida como uma área utilizada por populações tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, de modo complementar, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte (UC, 2017a). O objetivo da Resex é proteger os meios de vida e a cultura das populações que nela residem e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade de conservação. A Resex Chico Mendes foi criada por decreto presidencial em 12 de março de 1990 e ocupa uma área de 970.570 hectares de bioma amazônico no Estado do Acre (UC, 2017b). Esta unidade de conservação foi constituída a partir da reivindicação do movimento seringueiro, do qual um dos principais expoentes foi Chico Mendes. A pesquisa foi realizada na comunidade Rio Branco, no seringal Floresta, que fica no município de Xapuri. As principais atividades de subsistência das famílias desta comunidade são o roçado de arroz, milho, feijão e mandioca, dentre outros, e o extrativismo de espécies vegetais tradicionais da região amazônica: copaíba, jatobá, castanha e látex. Os produtos vegetais e a farinha de mandioca são comercializados por meio de cooperativa. A atividade de extração do látex da seringueira (Hevea brasiliensis) é a atividade de subsistência que caracteriza a história dos seringais do Acre, dos surtos da borracha e destes extrativistas. A borracha natural continua a ser explorada para atender à demanda da fábrica de preservativos masculinos instalada no município de Xapuri. Este é um empreendimento público (gerenciado pelo estado do Acre), cujo cliente é o Governo Federal, que distribui os preservativos nos postos de saúde das regiões norte e nordeste. A principal queixa do líder comunitário é com relação ao preço dos produtos extrativistas, muito baixos, e a “fuga” dos jovens para os centros urbanos mais próximos. Com o objetivo de resgatar e valorizar a história dos seringueiros, foi desenvolvido plano de ensino de química na escola da comunidade pesquisada. As atividades basearam-se na química do látex de seringueira e permeou conteúdos de história, biologia e matemática. Ao final os estudantes participantes expressaram que as atividades utilizadas durante as mediações, que aproximaram o conhecimento tradicional do conhecimento em química, ajudaram na compreensão dos conteúdos científicos e na elucidação das dúvidas com relação à extração e ao processamento do látex que eles tinham. A Resex Marinha do Pirajubaé foi criada por decreto presidencial em 20 de maio de 1992 e localiza-se em Florianópolis, ocupando uma área de 1.712,08 hectares que abriga o Manguezal do Rio Tavares e 700ha de baía (bioma marinho) (UC, 2017c). A Resex localiza-se na região urbana da Ilha de Santa Catarina e o principal recurso explorado pelos pescadores artesanais era o berbigão (Anomalocardia brasiliensis). Para instalar a via expressa sul, que liga o centro de Florianópolis ao sul da ilha, foi construído, entre 1995 e 1996, um aterro hidráulico que expandiu a área da planície costeira da enseada do Saco dos Limões (SPÍNOLA et al, 2014). Os impactos da construção provocaram a redução dos estoques dos recursos pesqueiros, principalmente o berbigão. Segundo o líder comunitário, não há mais a pesca artesanal na Resex e como alternativa de renda a comunidade instituiu o turismo de base comunitária. Desta forma, são oferecidos passeios de barco pela baía com parada para andar no manguezal e conhecer as espécies vegetais e animais e o trabalho antigamente desenvolvido pelos extrativistas. Segundo Spínola e colaboradores “no caso de Pirajubaé, quando se impuseram interesses de grupos sociais dominantes em conflito com os objetivos da RESEX, este arranjo institucional mostrou-se incapaz de proteger os recursos ambientais e de garantir os direitos da população extrativista sobre estes em seu território, como propõe esta modalidade de Unidade de Conservação” (SPÍNOLA, 2014, p. 139). A partir do trabalho de campo foi desenvolvido plano de ensino de química que considerava a dinâmica dos ciclos biogeoquímicos do nitrogênio e do enxofre, bem como padrões de qualidade da água do mar. As atividades foram desenvolvidas no curso pré-vestibular comunitário da escola do bairro Rio Tavares e permitiram mudança de visão dos estudantes com relação à importância do ecossistema. Antes, o manguezal estava distante da realidade deles, apesar de vários morarem sobre o manguezal. Depois, as respostas estavam fundamentadas de acordo com as aulas desenvolvidas, argumentando que seriam capazes de reivindicar políticas de proteção ao ecossistema.

Conclusões

As Resex Chico Mendes e Marinha do Pirajubaé aproximam-se porque foram criadas com o objetivo de proteção ao meio-ambiente e à cultura das populações que abrigam e porque passaram a sofrer pressões econômicas próprias do sistema especulativo do mercado. A primeira com a fuga de jovens que não se interessam e não valorizam as atividades extrativistas em decorrência do baixo rendimento financeiro e das “facilidades” da cidade e a segunda, com a necessária mudança de atividade econômica advinda da pressão urbanística. Em cada situação de ensino realizada foi possível incrementar argumentos científicos das populações tradicionais que possam ser usados em suas reivindicações sociais. O fato observado corrobora com o pensamento de que a educação é o motor de mudança da sociedade por permitir a formação de cidadãos críticos e conscientes de seu papel na sociedade.

Agradecimentos

Agradecemos aos extrativistas da comunidade Rio Branco da Resex Chico Mendes e aos pescadores artesanais da Resex Marinha do Pirajubaé.

Referências

CHASSOT, A. Sete escritos sobre educação e ciência. Cortez: São Paulo, 2008.
DAMASIO, F.; PEDUZZI, L. O. Q. Considerações sobre a alcunha atribuída a Paul Feyerabend de “pior inimigo da ciência” e suas implicações para o ensino de ciências. Alexandria, v. 10, n. 1, p. 329-351, 2017.
DELIZOICOV, D.; ANGOTTI, J. A. P.; PERNAMBUCO, M. M. Metodologia do ensino de ciências. 2ed. São Paulo: Cortez, 2009.
DIEGUES, A.C.; ARRUDA, R.S.V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2001.
FEYERABEND, P. K. Contra o método. São Paulo: UNESP, 2011.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 49ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
_____ Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a prática educativa. 43ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011
SPÍNOLA, J. L.; TEIXEIRA, C. F.; ANDRIGUETTO FILHO, J. M. Desafios à cogestão: os impactos da Via Expressa Sul sobre o extrativismo na RESEX Marinha do Pirajubaé. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 32, p. 139-150, 2014.
UC, 2017 A. Disponível em: <https://uc.socioambiental.org/uso-sustent%C3%A1vel/reserva-extrativista> Acesso em: 05 JUL 2017.
UC, 2017 B. Disponível em: <https://uc.socioambiental.org/uc/2024> Acesso em: 05 JUL 2017.
UC, 2017 C. Disponível em: <https://uc.socioambiental.org/uc/590591> Acesso em: 05 JUL 2017.