Autores

Reolon Pereira, R. (PEQUI-UFRJ) ; Araujo Neto, W. (UFRJ) ; Santos, N.P. (UFRJ)

Resumo

Conceitos científicos apresentam dimensão social, cultural e histórica. A identidade cultural na pós-modernidade, defendida por Stuart Hall, será transposta de identidade cultural de sujeitos para identidade cultural de um conceito científico. Para isso, foram desenvolvidas atividades com um grupo de docentes ainda em formação inicial no curso de licenciatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com o intuito de construir um “lugar conceitual” do conceito de radioatividade, na perspectiva deste grupo social. Este lugar é dinâmico, mas para esse grupo o conceito científico é melhor representado por vídeos numa perspectiva escolar.

Palavras chaves

Identidade cultural; Radioatividade; Formação inicial

Introdução

A radioatividade é um tema ministrado nos cursos de química da Educação Básica no Brasil como conteúdo programático para o Ensino Médio. Este tema chama a atenção de curiosos por ciência e tecnologia uma vez que muitas séries e filmes usam este tema para ancorar suas narrativas ficcionais em torno da realidade científica. O famoso personagem Homem-Aranha, criado por Stan Lee e Steve Ditko em 1962, “obteve seus poderes ao ser picado por uma aranha radioativa” (MERÇON e QUADRAT, p. 30, 2004). Outros filmes e séries utilizam o tema da radioatividade em seus roteiros, tais como: The 100, Batman vs Superman, Capitão América 1, The Flash, e Supergirl (CAMPOS et. Al., p. 199, 2019), nos quais abordam o tema em alguma cena. A radioatividade atravessa o imaginário popular de diferentes maneiras e também articula sua identidade com os momentos de atividade escolar no ensino de química. Esta pesquisa tem como objetivo mapear e distinguir as intencionalidades que emergem dos discursos e dos signos usados de forma motivada, por um grupo de professores de química em formação, na apresentação da radioatividade como um conteúdo didático, à guisa de construirmos uma “identidade cultural” deste conceito. Identidade Cultural será tratada aqui segundo o referencial teórico de Stuart Hall (1932 – 2014). Este autor, no seu livro “A identidade cultural na pós – modernidade”, explica que na comunidade sociológica já se pensou diferentes tipos de concepções de identidade distintas: sujeito do iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. Hall se baseia neste último, pois este não há identidade fixa, essencial ou permanente, as identidades são construídas historicamente e mudam de acordo com o momento (HALL, p. 10, 2006). Para Hall, a identidade cultural está usualmente associada a um sujeito ou um grupo de sujeitos, quando, por exemplo, ele trata da identidade cultural nacional, ou seja, de uma nação. No caso da identidade cultural de uma nação, baseia-se nos símbolos, discursos e práticas de um grupo de sujeitos e está tudo atrelado a um espaço físico. Vamos aqui transpôr a ideia de identidade cultural do sujeito pós-moderno para identidade cultural de um conceito científico. Acredita-se que um conceito seja construído historicamente por um grupo social e, por isso, seja instável, sofrendo ressignificações continuamente. A identidade cultural de um conceito científico também dependerá dos símbolos, discursos e práticas em torno dele. Mas não tem uma conexão de dimensão material com um espaço físico. O que pode haver é uma atribuição, imaterial, de um conceito ao seu “lugar conceitual”. Este lugar conceitual também é instável e dinâmico (HALL, 2019). Um conceito de maneira geral dá significado a um mesmo assunto ao longo do tempo, os conceitos científicos também, mas têm um lugar conceitual dinâmico, que depende da sua identidade cultural, segundo esta visão. Um exemplo de conceito que é dinâmico e, ao mesmo tempo, mantém certos padrões é o conceito científico de átomo. Ao estudar as propostas de modelos atômicos ao longo da história, é possível reconhecer que o lugar conceitual de átomo é inacabado e dinâmico. Mudam-se as representações e os discursos e isso produz um lugar conceitual distinto para este conceito. Alguns dos canais de construção da identidade cultural, e da memória, de um conceito científico são, sem dúvida, o espaço escolar e a mídia. A mídia se mostra um canal ainda mais poderoso do que a escola atualmente. Isso se dá graças aos avanços tecnológicos das últimas décadas e por ela apresentar representações nos modos verbais e não-verbais do conceito científico, em diferentes estéticas. Defendemos que seja possível construir uma identidade cultural de um conceito científico usando canais de mídia, e isto foi ensaiado nesta pesquisa. Isso pode ser feito, por exemplo, através do uso do material na internet ou por meio de anúncios publicitários. Além do conceito de Identidade Cultural de Hall, este autor traz outro conceito importante em seu livro: o de deslocamento (ruptura) para falar do momento da ressignificação ou desarticulação das identidades estáveis do passado, o que gera possibilidade de criação de novas identidades. O autor considera várias transformações sociais para chegar nesta posição quando fala do descentramento do sujeito: como as tradições do pensamento marxista; o trabalho de Michel Foucault (poder disciplinar) e o impacto do feminismo na sociedade (HALL, p. 34, 2006). Hall explicita que: “o significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas é constantemente perturbado (pela diferença)” (DERRIDA, 1981, apud HALL, p. 41, 2006).

Material e métodos

Nesta pesquisa, o grupo social é muito importante, pois sob esta perspectiva pretendemos construir a identidade cultural da radioatividade. A pesquisa foi desenvolvida com os licenciandos da disciplina “Química na Escola 2 (Cinema e Interdisciplinaridade)”, ministrada no curso de Licenciatura em Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Esta disciplina é presencial, mas também utiliza um ambiente virtual de aprendizagem (AVA) da UFRJ. A atividade foi realizada em dois momentos. No primeiro momento foi pedido, na aula presencial, que os licenciandos acessassem os computadores da sala com internet e selecionassem na plataforma online Youtube vídeos que representassem o conceito de radioatividade, sob suas perspectivas. Eles tiveram cerca de 15 minutos para fazer a busca e a escolha de tais vídeos, escrevendo no AVA uma pequena frase que justificasse a escolha. Não foi dada nenhuma orientação sobre estar conectado como usuário na plataforma ou não, logo não temos este dado, porém sabemos que isso interfere no material sugerido pelo Youtube, já que a sugestão é dada de acordo com o controle de seus dados da internet. A atividade foi posta no AVA e, neste dia, havia 12 licenciandos presentes, então primeiramente obtivemos 12 respostas. Um licenciando enviou o vídeo com atraso, então não sabemos quanto tempo ele levou para a escolha do vídeo e ele não postou a frase por escrito justificando sua escolha. Por esses motivos, achamos prudente descartar seus resultados da pesquisa, pois não foram obtidos de forma criteriosa, segundo a metodologia proposta. No segundo momento, foi pedido que os licenciandos recuperassem os links dos vídeos e suas breves justificativas, apresentassem seu vídeo para a turma e justificassem oralmente a escolha. Essas justificativas em modo verbal oral foram registradas por gravador. Todos os licenciandos que se apresentaram foram gravados e assinaram o termo de consentimento, liberando seus registros de áudio para a pesquisa. Além disso, eles tiveram que responder a um questionário, formulário online, da plataforma Google, para o reconhecimento do grupo que tinham questões pertinentes à pesquisa. Neste outro dia, havia 17 alunos, então obtivemos 17 respostas para o questionário. O conjunto de dados compreendeu: playlist com 11 vídeos no Youtube, 11 justificativas por escrito, 11 justificativas orais e 17 respostas do questionário. Escolheu-se trabalhar com as justificativas tanto em modo escrito quanto oral, por reconhecer que tais modos de expressão são distintos e apresentam suas especificidades. O material audiovisual recolhido foi submetido a uma análise semiótica e todos os outros materiais também foram analisados para gerar os resultados obtidos.

Resultado e discussão

Para um reconhecimento do grupo e levantamento das questões, começaremos pela análise do questionário (formulário da plataforma Google). O grupo era de licenciandos em química da UFRJ, a partir do 3º período. Segundo nossas respostas, podemos dizer que o grupo declara-se majoritariamente (58,8%) do gênero mulher, na faixa etária de jovens adultos 64,7% entre 16 e 25 anos. No questionário, foram feitas perguntas a fim de buscar se haviam influências da formação acadêmica no conceito de radioatividade para este grupo, como por exemplo: “No currículo do seu curso atual de Licenciatura em Química da UFRJ, há alguma disciplina para tratar especificamente sobre radioatividade? ”. A resposta será apresentada no gráfico 1 a seguir: Isto significa que eles, em sua maioria, sabem que não existe uma disciplina específica no curso de licenciatura em química da UFRJ para tratar sobre o tema. Porém quando foram consultados se este tema estará presente na sua prática docente, o gráfico 2 mostra que todos tinham certeza de que sim. A pergunta foi: “Você, enquanto professor (a) de Química formado (a), terá que ministrar aulas sobre o tema de radioatividade? ”. Estes dados revelam uma assimetria na formação, entre o conteúdo a ser ministrado na Educação Básica pelos docentes de química e o currículo da formação inicial, numa das maiores universidades federais brasileiras. Isso também mostra a relevância de abordar o tema de radioatividade, principalmente com docentes em formação inicial. Outro dado que se destaca tem conexão direta com a questão levantada anteriormente, e foi interpretado a partir das respostas à seguinte questão: “De onde vem a sua percepção atual sobre o tema de radioatividade? Comente brevemente”. Neste caso, quase metade do grupo (47,1%) respondeu citando a Educação Básica. Das 17 respostas obtidas, alguns exemplos foram: “Das aulas do Ensino Médio”, “Aprendizado no ensino médio” e “Vídeos, ocorrências noticiadas mundo afora, livros”. Somente um estudante citou a formação acadêmica como influência em sua percepção do conceito, falando das aulas de química geral 1. Estas respostas nos levam a pensar que a identidade cultural do conceito de radioatividade, para este grupo, está pautada muito mais no que eles aprenderam enquanto estudantes no Ensino Médio e na mídia, do que na formação científica acadêmica no contexto universitário. Isto também revela a importância em se fazer pesquisa sobre a identidade cultural deste conceito, já que esse grupo contribuirá com grande influência para a construção da identidade cultural deste conceito para novas gerações, na sua prática docente na Educação Básica. A lista dos vídeos se encontra disponível no Youtube no link a seguir: https://www.youtube.com/playlist?list=PLwYJkPD1C8IKKqIWUl4KI8-dn4jApIFAP. Os 11 vídeos escolhidos foram separados em 3 categorias, segundo suas estéticas: 1) Vídeo-aula tradicional; 2) Narrativa educativa; 3) Animação. Na estética 1, três licenciandos escolheram esse modelo de vídeo. Na estética 2, foi onde houve mais procura, onde 7 licenciandos escolheram-na. Houve 2 repetições, isto é, 5 vídeos, mas 7 licenciandos escolheram esta estética. Por fim, a estética 3, apesar de ser a mais criativa e com maior dramaticidade, só foi escolhida por uma licencianda. É preciso ressaltar que a categoria 2 sugerida como “narrativa educativa” é, para os autores deste trabalho, um tipo de vídeo-aula, porém com uma estética menos direcional. As relações hierárquicas professor-estudante ficam mais sutis e mesmo que o foco seja o aprendizado, este se dá de forma mais contextualizada dentro da narrativa. Levando isto em consideração, percebe-se que as vídeo- aulas, de maneira geral, foram 90,9% dos vídeos escolhidos. Esse é um resultado importante que revela que este grupo social, professores de química em formação inicial, elegeram para representar o conceito de radioatividade vídeos num modelo de aula. Para este grupo, este conceito ainda deve ser representado numa perspectiva escolar, de aula. Num dos relatos orais dos licenciandos podemos identificar esta conexão forte entre o conceito e a representação deste numa perspectiva escolar: “Então, eu escolhi esse vídeo porque, pra mim, foi o que mais se assemelhou ao conteúdo de radioatividade que é ensinado nas escolas [...]”. No relato escrito de uma das licenciandas é possível notar que ela parece concordar com a sutil diferença entre a vídeo-aula tradicional e a narrativa educativa: “[...] considerando que a maioria dos vídeos encontrados foram vídeo aulas onde professores explicam sistematicamente e com auxílio de um quadro. Tal escolha, portanto foi dada pensando em fugir, ainda que pouco desse enquadramento”. Como descrito na metodologia, não foi dada nenhuma orientação sobre estar conectado como usuário no Youtube, logo não temos este dado, porém sabemos que isso interfere no material sugerido pela plataforma isto pode ter relação com quais foram os vídeos propostos para este grupo, lembrando que a sugestão é dada de acordo com o controle de seus dados da internet. Mas, de qualquer forma, a escolha dos vídeos no Youtube está diretamente ligada à disponibilidade de vídeos sobre o assunto na plataforma. Podemos perceber que alguns dos vídeos escolhidos eram ligados a instituições de pesquisa na área, contudo ainda há prevalência de empresas privadas sobre a disponibilidade de recursos audiovisuais. Isso nos leva a pensar que a estética “vídeo-aula” ter sobre o assunto uma frequência tão alta, não está somente ligada ao fato de serem licenciandos, mas também ao fato de muitas empresas privadas venderem esse tipo de material atendendo a uma demanda mercadológica sócio-educacional. Ao analisar os vídeos, pode-se perceber que este grupo está bastante distanciado da história da descoberta da radioatividade, por exemplo, e que permanecem focalizando vídeos que tratam da transposição do conceito científico em si para a cena escolar contemporânea. Somente dois vídeos citam Marie Curie, e nenhum vídeo dá ênfase diretamente à história da descoberta da radioatividade ou à contribuição de cientistas como Antoine H. Becquerel e Pierre Curie. Para este grupo, inferimos que a identidade cultural deste conceito se constrói quase que de maneira a-histórica. Este grupo deu mais ênfase nos acidentes e nos perigos da radioatividade do que na sua história. Um dos relatos orais de uma das licenciandas mostra esta tendência. Ela escolheu uma animação para representar o conceito e esta animação reconstrói com cenas fortes a destruição de Hiroshima causada pela bomba atômica. A licencianda justificou: “[...] É claro que tem a parte positiva, você tem que passar a parte positiva também. Mas eu escolhi esse vídeo pelo impacto, o impacto da interdisciplinaridade da química com o cotidiano e como ela é usada mesmo e como isso ia afetar os alunos”. Através dos resultados obtidos tentou-se não somente identificar a pluralidade de identidades para a radioatividade, pautadas nos signos e nos discursos produzidos sobre os vídeos escolhidos e que representassem este conceito para o grupo estudado (composto por professores de química ainda em formação inicial), mas buscou-se também identificar transformações sociais que poderiam promover as rupturas (descentramentos) nestas identidades, alguns fatos que podem promover este tipo de “crise de identidade”. Como, por exemplo, o fato dos acidentes ou perigos terem sido tão citados nos vídeos escolhidos pode ser devido ao fato desse grupo pertencer a um segmento social que acessa a mídia sobre esse tema. Nos meios de comunicação há muito material com esta visão, principalmente depois da 2ª guerra mundial. Mas nem sempre a mídia apresentou a radioatividade com este sentido, o trabalho de Pereira, Araujo Neto e Santos (2019) debate os diferentes sentidos da radioatividade na mídia numa dimensão temporal. Ou seja, queremos afirmar que o lugar conceitual do conceito de radioatividade depende de sua dimensão cultural e é dinâmico.

gráfico 1

Gráfico pizza

Gráfico 2

Gráfico pizza (segunda imagem)

Conclusões

As fontes para construção de uma identidade cultural de um conceito científico podem variar. Mas essa identidade cultural depende sempre dos sujeitos e das suas formas de uso do conceito, levando-se em consideração seu contexto sócio histórico. As formas de uso definirão quais signos e discursos esse grupo usa para representar aquele conceito, para lhe atribuir significados e significantes. No caso específico da radioatividade, este conceito está presente na prática docente do licenciado em química. Por isso, o conjunto de atividades aplicado a esse grupo social pode construir qual é o lugar conceitual da radioatividade para ele. O atual trabalho apresenta metodologia que utiliza recursos audiovisuais disponíveis no YouTube para fazer tal relação. A partir dos vídeos e das falas desse grupo, pode-se notar que este grupo não está conectado à história da descoberta da radioatividade, o que indica uma lacuna na formação inicial deles em termos do conceito em si e de história da química. Também é possível notar que este lugar conceitual se constrói numa relação direta entre radioatividade, saúde e sociedade. Mas a maior preocupação deste grupo era de representar o conceito por sua definição, sua descrição do fenômeno científico numa perspectiva de aula, isto é, escolar em sentido estrito. A pesquisa, para além da análise dos resultados, busca promover uma reflexão teórica e, com isso, convida o leitor a refletir sobre a radioatividade, o ensino de química, a formação inicial do docente em química e a dimensão cultural da ciência.

Agradecimentos

Referências

CAMPOS, R. M. et al. Uso de filmes no ensino de radioatividade: uma estratégia motivadora para aulas do nível médio. Scientia Naturalis, v. 1, n. 3, p. 193-208, 2019.
HALL, S. A identidade cultural na pós – modernidade/ tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro- 12. Ed.- Rio de janeiro: DP&A, 2006.
HALL, S. Essential Essays: identity and diaspora. London: Duke University Press, 2019.
MERÇON, F.; QUADRAT, S. V. Radioatividade e história do tempo presente. Química Nova na Escola, n. 19, p. 27-30, maio, 2004.
PEREIRA, R. R.; ARAUJO NETO, W. N.; SANTOS, N. P. Palavras da química como marcadores culturais: um estudo teórico. In: Congreso Iberoamericano de Educación Científica, 10., 2019, Montevideo (Uruguai). Anais... Alcalá de Henares (Espanha): Universidad de Alcalá Servicio de Publicaciones, 2019. v. 3. p. 385-393