Autores

Cardoso, A.C.O. (IFRJ-NILÓPOLIS) ; Barros, H.N.S. (IFRJ-NILÓPOLIS) ; Oliveira, D.A.A.S. (NUTES/UFRJ) ; Messeder, J.C. (IFRJ-NILÓPOLIS)

Resumo

O presente trabalho consiste em um relato de experiência realizado com alunos do 4º ano de uma escola municipal do Rio de Janeiro. A intervenção teve início no 16º Simpósio Brasileiro de Educação Química, com uma contação de história, onde tais alunos participaram como ouvintes. As etapas seguintes foram baseadas nos elementos da história infantil, partindo-se de uma “luneta mágica” às discussões sociocientíficas, extrapoladas numa oficina de lunetas artesanais. A cegueira do rei, personagem da história, foi discutida em rodas de conversa, e possibilitou destacar o perigo de produtos químicos, assim como realização de experimentações demonstrativas. Com as etapas desenvolvidas pode-se compreender a importância de idear estratégias de ensino que correspondam às relações sociais dos alunos.

Palavras chaves

Ensino Fundamental; Literatura Infantil; Ensino de Química

Introdução

A literatura infantil é um universo próprio e particular onde realidade e fantasia estão imbricadas na construção de marcas sociais que a criança constrói e pode levar por toda uma vida. A experiência com a linguagem na infância ocorre por via das narrativas e nas brincadeiras onde se apreendem as regras de funcionamento do mundo, como regras de funcionamento de um jogo, por exemplo. Não são necessárias elaborações espetaculares para que a criança perceba essas regras, é a própria criança que permite que esse fenômeno aconteça. Ela recebe despretensiosamente o inacabado, a não certeza das respostas e a infinitude dos questionamentos em um universo próprio onde a fantasia se entremeia aos fenômenos do cotidiano. Nisso cabe o universo desconhecido e que se constrói no imaginário infantil sobre fatos e fenômenos naturais e sociais que a criança vivencia, e outros que observa cotidianamente. Nesse cenário, a literatura infantil explora esses dois mundos. Transfigura a linguagem e analisa o real o e transporta à fantasia. No embricamento dessa tríade (linguagem, fantasia e cotidiano) representações sociais são construídas, valores sociais são apreendidos e generalizações são estabelecidas pelas crianças (MAZZOTTI, 1994). Neste trabalho buscou-se analisar a potencialidade pedagógica que o uso da Literatura Infantil e Infanto-juvenil pode fomentar nas discussões entre a realidade e fantasia quando envolvem o conhecimento de mundo por meio do conhecimento químico. A atividade foi elaborada e desenvolvida por dois bolsistas participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), juntamente com a professora regente da turma e participante do projeto e com o orientador responsável pela pesquisa.

Material e métodos

A atividade foi desenvolvida em três momentos, sendo dois na escola campo do projeto, e um no 16º Simpósio Brasileiro de Educação Química (SIMPEQUI). A primeira etapa consistiu em levar 23 alunos do 4º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal para o SIMPEQUI, a fim de assistirem uma contação de história sobre o livro infanto-juvenil A luneta mágica no reino da escuridão (QUEIROZ, 2016). Este livro consiste na aventura de uma personagem que foi levada para um reino mágico que vive na escuridão desde que seu rei ficou cego. A personagem enfrenta diversos obstáculos para trazer novamente a luz para o reino, dentre eles, ela precisa encontrar uma luneta mágica que possui o poder de curar a cegueira real. A segunda etapa foi realizada no ambiente escolar, tendo como participantes os mesmos alunos que foram ao simpósio. De início, os bolsistas relembraram a história que fora contada, a fim de se ressaltar a luneta mágica e seu poder de ver o que se mais deseja. A discussão encaminhou a atividade para uma oficina de confecção de lunetas com materiais reciclados. Sendo assim, os grupos de alunos confeccionaram suas lunetas, para então serem questionados quanto ao que desejariam ver com elas, e explicassem na forma de textos e desenhos (DERDYK, 1994). O terceiro momento foi iniciado com o reconto da história; porém, desta vez os alunos foram questionados sobre quais seriam os motivos da cegueira do rei, uma vez que não é revelado na história. Ao especular o motivo pelo qual o rei teria ficado cego, o cenário fantasioso foi levado para o mundo real e diversas possibilidades foram levantadas para o fato ocorrido, dentre eles, o perigo dos produtos químicos que utilizamos em nosso cotidiano. E assim, os alunos expuseram situações perigosas que envolvem estes produtos, sejam com eles, com conhecidos e/ou familiares. Uma apresentação de slides foi utilizada com o objetivo de explanar imagens de produtos domissanitários cujos rótulos não existiam, produtos de limpeza que facilmente são confundidos com produtos alimentícios devido suas similaridades, equipamentos de segurança adequados para momentos nos quais há exposição aos produtos perigosos e apresentação de pictogramas. Para finalizar, os bolsistas realizaram um experimento demonstrativo com permanganato de potássio, vinagre e água oxigenada, que ao longo do experimento gera três líquidos com aparências de refrigerante, majoritariamente conhecido pelos alunos. Assim, reforçou-se a ideia de riscos químicos ao se lidar com produtos cujos aspectos, formas ou cheiros são parecidos. Ao final da atividade, os pesquisadores fizeram perguntas para os alunos, em rodas de conversas, incentivando-os a levarem os conhecimentos da sala de aula para suas casas, e discutirem com seus familiares (MOURA; LIMA, 2014). Com o querer saber aguçado, foi oportuno permitir que as crianças também fizessem perguntas sobre qualquer curiosidade na área de ciências que possuíssem afinidade com os temas estudados.

Resultado e discussão

A interação dos alunos com o ambiente fora da estrutura escolar, em conjunto com a insólita experiência de participar como ouvintes de uma contação de histórias, proporcionou novas e benéficas experiências para os mesmos. Visto que, a ludicidade envolvida na narrativa oral, provoca o pensar e desperta emoções ao trabalhar com a imaginação, raciocínio, estímulos emocionais, memória e reflexão (FARIA et al., 2017). As crianças manifestaram diversas emoções com relação à contação de história e a performance da contadora; elas variaram desde a curiosidade e o espanto até o entusiasmo, sendo que em determinado momento expuseram suas dúvidas e curiosidades sobre o enredo. A interação dos alunos com a contadora de história finalizou-se com cada estudante ganhando um livro autografado pela autora, além de aproveitarem para percorrer os outros espaços do simpósio, um evento cujo objetivo é disseminar saberes relacionados com a Educação em Química. A literatura tem em si algo grau de fantasia, que por sua vez, atua sobre as emoções e percepções dos alunos sobre o mundo (LINSINGEN, 2008). Com o objetivo de explorar a atividade externa, deu-se início à segunda etapa da pesquisa, ocorrida em sala de aula, com a presença de 20 alunos (10 estiveram presentes no SIMPEQUI). Apesar de nem todas as crianças estarem no primeiro momento, não houve dificuldade para a realização das etapas seguintes, uma vez que a etapa inicial foi usada para relembrar a história a todos os presentes. Em roda de conversas houve melhor interação entre os pesquisadores e os participantes, onde os estudantes revelaram o impacto positivo da narrativa oral, em que os mesmos recontaram a história com detalhes, deixando suas impressões e sentimentos durante a performance da contadora. A partir das falas dos alunos, percebeu-se que a teatralização teve uma grande influência no entendimento da história; a utilização de fantoches foi cativante e auxiliou na fixação do enredo, uma vez que as vozes marcaram e caracterizaram seus personagens (Figura 1). Em sala, as crianças encenaram partes da história demonstrando o interesse para com a contação. Assim, durante o processo de fala dos alunos, foi destacado o poder da luneta mágica. Com isto posto, propusemos uma oficina das lunetas, em que a turma foi dividida em seis grupos contendo entre três e quatro estudantes. O passo a passo foi explicado e orientado, onde todos os grupos realizaram suas lunetas com os enfeites escolhidos. O momento lúdico contribui para o processo de desenvolvimento intelectual e social da criança enquanto participa do momento de brincadeiras (VYGOTSKY, 1991). Com a luneta em mãos, o caráter humanístico da atividade foi explorado quando se indagou os alunos sobre o que desejariam ver com a luneta que confeccionaram, caso ela tivesse a mesma magia da exposta na história. As crianças fizeram desenhos e textos para representar os seus desejos, com isso, foi revelado uma lamentável realidade em que necessidades básicas como alimentação eram ditos como um desejo, além de relações de afeto com familiares. Segundo Vygotsky (2001), este processo de compreensão das relações sociais em que as crianças pertencem é conveniente, visto que estes influenciam no modo de pensamentos. A terceira etapa contou com a participação de 25 alunos, sendo 15 alunos integrantes do grupo que foi ao SIMPEQUI. Mais uma vez, para facilitar a compreensão dos que não foram ao simpósio, houve uma releitura realizada pelos alunos. O tema em destaque foi o motivo da cegueira do rei, que a propósito foi uma das curiosidades das crianças enquanto estavam no SIMPEQUI, onde a própria autora confessou que nunca havia imaginado um motivo para tal acontecimento. Ao se levantar esta discussão, em roda de conversas, os alunos disseram que a cegueira poderia ser consequência da velhice, maldição realizada na fantasia da história, doenças como catarata e outras que prejudicam a visão, antena de pipa no ato da brincadeira, ou com o manuseio inadequado de produtos químicos. Foi neste momento que a atividade teve continuidade, ressaltando a periculosidade de produtos químicos presentes nas residências deles. Para saber sobre a realidade dos alunos, houve questionamentos sobre quais produtos químicos eles conheciam fazer parte do cotidiano, e se ouviram falar sobre acidentes com tais produtos químicos. A maioria falou sobre produtos de limpeza e relataram a ingestão acidental destes por familiares, devido à confusão ao conteúdo presente no recipiente, e com isso acabavam ingerindo achando ser um produto alimentício. Esta confusão entre produtos químicos e alimentícios foi previsto e confirmado com os relatos dos alunos, devido ao fato corriqueiro de que na região produtos de limpeza caseiros são comprados em embalagens impróprias, como garrafas pets (comumente usadas para refrigerantes), além de serem aproveitadas para o armazenamento de sucos e água. Alguns slides foram apresentados, mostrando fotos que auxiliaram nas discussões desses assuntos (Disponível em: https://docs.google.com/presentation/d/1ch6s5v_E2ph1ElI1VAVRZyFLmGXeQFMqPPfL GLVhpv0/edit?usp=sharing. Acessado em 28/06/2019). As primeiras imagens mostravam produtos de limpeza caseiros armazenados em garrafas pets sem rótulos. Os alunos foram questionados sobre os líquidos presentes nestes recipientes, e eles próprios perceberam que é difícil identificá-los, devido à falta de rótulos. Tal atividade corroborou com os apontamentos Gomes, Dionysio e Messeder (2015), indicando a importância de se discutir a observação de rótulos de produtos domissanitários em aulas de ciências. A apresentação teve continuidade com imagens de produtos com aspectos similares aos alimentos consumidos por eles, seja por causa da embalagem similar ou reaproveitada; aromatizante, como produto de limpeza com cheiro de laranja ou ainda com a imagem da fruta na embalagem; o fato de alguns produtos serem incolores e sem cheiro, o que pode ser confundido facilmente com água; o próprio aspecto físico dos produtos como amaciante rosa e iogurte rosa, soda cáustica e sal grosso. Esta apresentação teve como resposta o espanto dos alunos, pois muitos não sabiam do risco que tais similaridades causam, com isso, disseram que ficarão atentos. Dando continuidade, as próximas imagens revelaram os riscos de manuseio sem o equipamento adequado, onde os produtos entram em contato direto com a pele. Esse foi o mote para se discutir a importância do uso de equipamentos básicos para se evitar acidentes, como luvas e óculos de proteção. A problematização seguinte foi o armazenamento de produtos de limpeza no mesmo local que alimentos. Os alunos deram alguns exemplos, como garrafa com água sanitária dentro da geladeira. Desta forma, aproveitou-se o momento para provocar uma discussão sobre como proporiam uma solução para este problema com as embalagens. Eles chegaram a uma conclusão que é preciso rotular, no mínimo escrever qual produto está presente no determinado recipiente. Para finalizar essa apresentação em slides, perguntou-se aos alunos como identificar se um produto é perigoso ou não, assim, os pesquisadores apresentaram e discutiram alguns pictogramas sobre riscos e prevenção de acidentes. Com intuito de finalizar a atividade, foi realizada a demonstração de um experimento de oxirredução com soluções de permanganato de potássio (KMnO4), de coloração violeta, similar ao vinho ou suco de uva, e água oxigenada (H2O2). Quando as duas soluções foram misturadas, o líquido resultante ficou com uma colocação marrom muito escuro, quase preto, igual a um refrigerante de cola. O experimento foi repetido com o meio ácido; ao colocar vinagre, e depois H2O2 na solução de KMnO4, o líquido resultante ficou incolor com liberação de gás, similar a água gasosa. Este apelo visual teve grande impacto, pois os alunos ficaram entusiasmados com as reações apresentadas, e reconheceram que se deve desconfiar de produtos que parecem simples alimentos.

FIGURA 1: Momento da contação de história.

A autora Karina Keiroz em uma das caracterizações dos personagens do livro "A luneta mágica no reino da escuridão".

Conclusões

De acordo com a observação e análise do conjunto de etapas, percebeu-se que a união entre histórias infantis e o conhecimento químico do cotidiano apresenta resultados bastante interessantes quanto à significação dos conteúdos e à dinamização das aulas. As atividades desenvolvidas puderam proporcionar uma experiência única aos participantes, de modo que puderam ouvir a contação de histórias pela própria autora do livro, além de um dia de autógrafos. A segunda etapa proporcionou a identificação dos aspectos emocionais e as vivências pessoais que podem refletir no processo de escolarização destas crianças. Estes conhecimentos propiciam uma adequação nas propostas de aula a partir do olhar professor, que se aperfeiçoa com a empatia. As discussões no terceiro dia de atividade, envolta dos acidentes com ingestão de produtos de químicos de limpeza devido à confusão com alimentos, confirmou a necessidade desse tipo atividade nas aulas de ciências. Verificou-se uma conscientização sobre os riscos químicos, a partir dos vários relatos, onde os alunos se mostraram intrigados e perceberam como é um problema corriqueiro de fácil solução. Unir o real a fantasia proporciona atividades únicas, onde a imaginação se faz essencial para propormos soluções para atividades que geram riscos à saúde. De maneira que estimular ao cognitivo reflete na construção de saberes, identidade e personalidade, quando a atividade é bem planejada, como concorda Farias (2017). No caso, utilizaram-se elementos da história para discutir questões humanísticas e sociocientíficas, mostrando que a proposta de uma atividade pode partir de situações e experiências do contexto do alunado. Trata-se de um elo mágico que nutre a imaginação e que transporta a realidade à fantasia, e vice-versa. Nesse enredo os personagens são postos diante de situações que exigem tomadas de decisão.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao IFRJ - Nilópolis e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo fomento à pesquisa.

Referências

DERDYK, E. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. São Paulo: Scipione, 1994.

FARIAS, I. G.; FLAVIANO, S. L. L.; GUIMARÃES, M. S. B.; FALEIRO, W. Influência da contação de histórias na Educação Infantil. Revista Mediação, Pires do Rio - GO, v. 12, n. 1, p.30 - 48, dez. 2017.

GOMES, L. M. J. B.; DIONYSIO, L. G. M.; MESSEDER, J. C. Análise de rótulos de produtos domissanitários como forma de discutir a química no cotidiano dos estudantes Educación Química, v. 26, n.1, 2015. Disponível em < https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0187893X1572094X>. Acesso em: 09 jun. 2019.

LINSINGEN, L. V. Literatura Infantil no Ensino de Ciências: articulações a partir da análise de uma coleção de livros. Dissertação de Mestrado em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2008. 121p. Disponível em < https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/91784/261298.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2019.

MAZZOTTI, A. J. A. Representações Sociais: aspectos teóricos e aplicações à Educação. Brasília, v. 14, n. 61, 1994.

MOURA, F.A; LIMA, M. G. A REINVENÇÃO DA RODA: roda de conversa um instrumento metodológico possível. Revista Temas em Educação, João Pessoa, v.23, n.1, p. 98-106, jan.-jun. 2014.

QUEIROZ, K. A Luneta Mágica no Reino da Escuridão. Editora Brinque Ler: Rio de Janeiro, 2016.

VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 1a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 4 a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.