Autores

Sousa, T.W.A. (UFMS) ; Pires, D.X. (UFMS) ; Queirós, W.P. (UFMS)

Resumo

Em meio a necessidade de autores que contribuam efetivamente para a consolidação de uma filosofia propriamente química, ganha destaque Ilya Prigogine - químico que estudou a termodinâmica, mas que também desenvolveu elaboradas discussões filosóficas a partir de sua pesquisa. Seria Prigogine um nome promissor para o enriquecimento da discussão filosófica da química? Através desta investigação, constatou-se que as proposições de Prigogine têm pertinência para propor e substanciar discussões do mundo filosófico químico. Esta pesquisa abre espaço para novas perspectivas, indicando a utilização do referencial prigoginiano em investigações que versem sobre a consolidação da filosofia da química, corroborando, direta e indiretamente, para o desenvolvimento do campo do ensino de química.

Palavras chaves

Educação química; Referencial prigoginiano; Epistemologia química

Introdução

Para que se defina uma completa e autêntica imagem filosófica do que seja Ciência, é necessário que todas as ciências tenham sido singularmente discutidas e analisadas. Assim, a química, com suas particularidades filosoficamente relevantes que não são encontradas nas outras ciências, pleiteia atenção nos debates da filosofia da ciência. É preciso que a singularidade da química seja assimilada pela comunidade cientifica, e cada vez mais parece haver consenso no meio acadêmico de que a química não só merece, como precisa de seu lugar no mundo filosófico (RIBEIRO, 2014). Partindo do pressuposto que a filosofia da física, da biologia e da matemática se apresentam como subáreas já consolidadas da filosofia da ciência, é comum o questionamento do porquê que o mesmo não ocorre para o estabelecimento de uma filosofia da química (KAVALEK et al., 2015). Para Bhushan e Rosenfeld (2000), afirmar que não existam questões filosóficas pertinentes na química já não é mais possível, isso porque a química se mostra como uma ciência criativa, indutiva, prática, histórica, relacional, diagramática, classificatória, podendo, inclusive, ser o próprio modelo de tecnociência e de ciência interdisciplinar. No que cerne ao campo educacional, a contribuição da filosofia da química para o ensino de química ainda é um campo pouco explorado, ainda que seja muito relevante (RIBEIRO, 2014). Neste sentido, Chamizo (2019) afirma que “a Filosofia da Química tem uma trajetória muito curta, e mais curta ainda é a incorporação do seu ensino nos currículos escolares.” Por outro lado, Erduran e Mugaloglu (2013) acreditam que é por meio das interações recíprocas entre considerações filosóficas e educacionais da química que a coerência teórica e empírica entre esses campos será estabelecida. Desta forma, o diálogo entre a filosofia da química e do ensino de química se mostra promissor e necessário, pois a compreensão da natureza da química pode contribuir para a pesquisa e prática da educação química. Erduran e Mugaloglu (2013) inclusive apontam o potencial da filosofia da química como o caminho necessário para melhorar a qualidade do ensino e da aprendizagem da química. Bejarano et al. (2018) cita, por exemplo, que o debate das temáticas próprias da filosofia corroboraria para o desenvolvimento de uma concepção epistemológica mais apropriada nos cursos de formação de professores. Já Erduran e Mugaloglu (2013) apostam que o tratamento de perspectivas filosóficas na educação química pode influenciar duas grandes áreas que têm preocupado os educadores: o construtivismo e natureza da ciência. A discussão filosófica da química no contexto didático pedagógico se faz necessária uma vez que, segundo Chassot (1995), a química que é ensinada difere muito da que se pratica no mundo fora das salas de aula. O autor ainda traz que, no mundo escolar, a química tem sido ensinada de maneira dogmática, conservadora, dedutiva e algorítmica. Mas para que a incorporação efetiva das perspectivas filosóficas químicas no ensino de química aconteça, é preciso que o próprio campo de filosofia da química consiga se consolidar. E é em meio a emergência da filosofia da química e da sua importância para o ensino de química que surge a necessidade de autores que contribuam efetivamente para a consolidação deste campo. Neste sentido, Ilya Prigogine - um químico russo que viveu a maior parte da sua vida na Bélgica e que dedicou sua vida à pesquisa com ênfase na interface entre química, física e filosofia (MASSONI, 2008) - parece ser um nome promissor para o enriquecimento da discussão filosófica da química. O trabalho científico de Prigogine faz referência direta com complexas problemáticas encontradas não só na química, mas também na engenharia, na biologia e nas ciências sociais, de uma forma que a ciência física raramente o faz. E, apesar de nunca ter se autointitulado filósofo em suas publicações, ele partilhou a opinião de que sua pesquisa científica tem grande importância filosófica (EARLEY, 2006). Com a proposta da Nova Aliança, Prigogine coloca em questão a pertinência ética da ciência e discute a inviabilização de segregação entre ciências humanas, ciências da vida e ciências da natureza. Por outro lado, Prigogine também dedicou parte das suas reflexões para a validação da química como ciência independente, posicionando-se contra o reducionismo da química à física tendo como pressupostos sua percepção de tempo e a irreversibilidade dos processos (PRIGOGINE, 2003). Com base no que foi explanado, surgem as seguintes questões: Prigogine tem pertinência para ser considerado um filósofo da química? Alguma das ideias de Prigogine pode contribuir para a discussão e consolidação de uma filosofia propriamente química? A partir do exposto, pretende-se explorar as possíveis contribuições que a discussão prigoginiana pode fornecer para o processo de consolidação de uma filosofia própria para a química, contribuindo, consequentemente, para o desenvolvimento do ensino de química.

Material e métodos

Esta pesquisa se caracteriza como um ensaio teórico, com o intuito de analisar a pertinência da obra prigoginiana como aporte para a consolidação da filosofia da química, corroborando, consequentemente, para o desenvolvimento da educação química. Ainda que se tenha recorrido a artigos e livros para a construção desta investigação, uma vez se tratando de um ensaio teórico, esta pesquisa não possui uma sequência metodológica tradicional (MENEGHETTI, 2011). “[...] o ensaio caracteriza-se pela sua natureza reflexiva e interpretativa, diferente da forma classificatória da ciência. No centro do ensaio está a relação quantitativa versus qualitativa. Enquanto a ciência adquire maior autonomia, valorizando aspectos quantitativos para promover generalizações que façam com que um número cada vez maior de pessoas passe a compreender o mundo a partir da instituição de uma racionalidade baseada na calculabilidade, o ensaio valoriza aspectos relacionados às mudanças qualitativas que ocorrem nos objetos ou fenômenos analisados pelos ensaístas.” (MENEGHETTI, 2011, p.322).

Resultado e discussão

Nesta sessão, pretende-se explanar algumas questões filosóficas que as ideias prigoginianas podem levantar no cenário da filosofia da química e, consequentemente, da filosofia da química. Sem delongas, neste momento, a principal contribuição de Prigogine para a filosofia da química é o seu potencial de reinterpretação de temáticas já discutidas – mas que precisam ser revisitadas - por meio de uma nova leitura de mundo. E essa nova leitura não permite que o mundo seja enxergado com as lentes simplistas do paradigma newtoniano. O pensamento-Prigogine ao propor uma revisão dos fundamentos da ciência clássica, acabou por sugerir que as discussões que foram influenciadas e encerradas pela irreversibilidade também fossem revisitadas. Ressalta-se que a epistemologia prigoginiana tem seus próprios assuntos de interesse, como a flecha do tempo e as bifurcações, por exemplo, e que estes podem ser indicativos de novos questionamentos também no universo químico. Não se questiona esse potencial da obra prigoginiana. Por outro lado, tomando a problemática dessa investigação, acredita-se que a grande incrementação prigoginiana se dá na releitura de temáticas que precisam ser revisitadas, principalmente no contexto químico. Ao revisitar essas problemáticas, o pensamento-Prigogine agora as compreende como partes integrantes de um mundo complexo. Um mundo que aceita a irreversibilidade dos fenômenos por meio da Nova Aliança - um tratado de respeito mútuo que o homem é chamado a fazer com a natureza. Como descrito anteriormente, a Nova Aliança é uma das principais proposições de Prigogine e é através da sua incorporação nas discussões que permeiam a episteme da química que Prigogine será oportunizado a contribuir para a consolidação da filosofia da química. Neste sentido, Salmon (2009), chega até a afirmar que os primeiros argumentos para as novas normas culturais para a filosofia da química são encontrados na obra de Prigogine, mais especificamente sem seu livro From Being to Becoming (PRIGOGINE, 1980). Ainda segundo Salmon (2009), estas normas abrangem desde a filosofia estática do ser de Parmênides até a filosofia do devir dinâmico de Heráclito. Diante do exposto até então, Prigogine parece trazer importantes contribuições para o campo filosófico da química. Pretende-se agora, a fim de ilustração, explanar algumas questões filosóficas que as ideias prigoginianas já revisitaram segundo a leitura de alguns autores. Como primeiro ponto, Prigogine pode levantar o debate sobre os aspectos da construção do conhecimento e afirma que esta deve ser realizada de forma coletiva. Com isso, na discussão prigoginiana, o avanço científico além de se dar ao longo do tempo, só acontece por meio do trabalho em equipe (ALMEIDA, 2004). Para o autor é preciso explicitar que todo conhecimento anteriormente produzido serve como alicerce para a produção de um conhecimento novo. Ao adotar essa linha de pensamento Prigogine visa inibir o “discurso de autoridade e a arrogância do intelectual” (ALMEIDA, 2004, p.81) que existe no meio científico e que induz a acreditar que descobertas suscitam do conhecimento individual, sem nenhuma relação com o passado ou com os seus pares. Desta forma, é preciso desmistificar o modelo de gênio individual (uma vez que este não retrata a imagem do cientista real); investigadores fazem uso do conhecimento de outros cientistas, que por sua vez utilizam das teorias de terceiros e assim sucessivamente. Negar a ideia do ser individual genial inibe também outro mito propagado no meio científico, o da sabedoria oracular. Ao trazer a discussão dos aspectos da construção do conhecimento para o mundo filosófico, Prigogine evoca a distinção entre conhecimento exotérico e conhecimento esotérico e a relação destes com a ciência. Para Prigogine o conhecimento científico não pode ser esotérico (aquele que é hermético, fechado, reservado aos íntimos, à comunidade de iguais, aos iniciados), deve- se, ao contrário criar condições para que ele se configure como exotérico (aquele que é de domínio ampliado e público) (ALMEIDA, 2004). Outra contribuição que Prigogine pode trazer para o ensino de química é a problematização do conceito. O autor toma como pressuposto que os conceitos se constituem como produtos humanos, sendo construídos no decorrer de um contexto histórico. Porém, deve-se ter em mente que os conceitos não são eternos, eles são validos apenas até o momento em que conseguirem ter consistência para explicar o que se propõe; quando não mais o conseguirem, devem dar espaço para que novos conceitos emerjam (DELEUZE, 2008). Segundo Prigogine, a sua validade crítica e política está relacionada à sua imanência e circunstância e não a sua essência. A existência de um conceito não deve travar o progresso científico; ao contrário, deve ser impulso para o desenvolvimento de seu campo. Prigogine assume, com isso, uma postura não estática dos conceitos. Neste sentido, Prigogine compreende os conceitos como produtos do cenário que em são construídos, ao mesmo tempo em que os conceitos também influenciam na construção do contexto. Assim, segundo a perspectiva de Prigogine, a produção científica só pode ser compreendida se estiver localizada na dialética entre a historicidade coletiva e a singularidade individual (DELEUZE, 2008; ALMEIDA, 2004). Prigogine também oportuniza ao Ensino de Química o debate sobre o que vem a ser o que vem a ser o progresso científico, sugerindo que este acontece quando são manifestadas e comprovadas novas explicações para fenômenos que já foram anteriormente explicados. No ideário prigoginiano, o maior inimigo do progresso científico é o apego às certezas tradicionais; a fobia do inovador é um dos grandes obstáculos da ciência. A tensão entre os que propõem algo novo e os que são resistentes a quebra de paradigmas é que proporciona o contraste inovação/conservação ou dinâmica/permanência que caracterizam o que se entende por ciência. Prigogine considera esse jogo de forças como fundamental para o progresso da ciência e é neste contexto que se encontra um recorrente dilema científico e filosófico: permanecer ou mudar o caminho? Na perspectiva prigoginiana também é proposta uma nova forma de se entender o universo. Prigogine, com sua nova formulação das leis fundamentais da natureza aponta um mundo que exige ser entendido de maneira histórica, o que também impacta significativamente o ensino de química. Desta forma, ele também pode enriquecer a discussão da importância da história para a construção do conhecimento químico, assim como aponta Näpinen (2007): A questão da auto-organização na física levou a uma nova interpretação das leis da natureza. Como Prigogine mostrou, elas não expressam certezas, mas sim possibilidades e descrevem um mundo que deve ser entendido de maneira histórica. Na nova compreensão filosófica da natureza, a prioridade não é atribuída a nenhum tipo ou nível de entidade, mas a processos históricos, a processos de geração e mudança sem fim (NÄPINEN, 2007, p.65). Neste sentido, Näpinen (2007), apoiado nas ideias de Prigogine, acredita que a química - entrelaçada com a biologia e com a física e ainda tendo seu próprio caráter específico - pode contribuir notavelmente para a compreensão histórica do mundo. Sabe-se que as discussões sobre a construção do conhecimento, a importância da história para a construção do conhecimento e a problematização do conceito e do progresso científico já foram realizadas por outros importantes autores como Bachelard e Koyré. Mas o que a proposta prigoginiana traz de inovador neste quesito é a sua interpretação destes mesmos fenômenos à luz de um mundo que reconhece o fim das certezas. Assim como Prigogine afirma que as bases da ciência clássica precisam ser revistas, essas discussões filosóficas que foram elaboradas e influenciadas por este mesmo paradigma da ciência clássica também precisam ser ressignificadas. Este é o lugar de pertinência do pensamento- Prigogine no contexto da episteme da química.

Conclusões

De maneira holística, a principal contribuição de Prigogine para a filosofia da química é o seu potencial de reinterpretação de temáticas já discutidas – mas que precisam ser revisitadas – no universo químico. Da mesma forma que o referencial prigoginiano sugere a releitura de problemáticas importantes para a filosofia da química, consequentemente, ele também indica que o mesmo deve acontecer para relevantes temáticas do campo de ensino de química. Os aspectos da construção do conhecimento, a problematização de conceito, as características do progresso científico e a importância da história para a construção do conhecimento foram evidenciados como exemplos de reflexões que Prigogine pode desestabilizar no campo filosófico da química. Todas essas temáticas são exemplos de questões filosóficas, de discussão necessária também para o ensino de química, e que podem colaborar para a legitimação de uma epistemologia química. Ainda que estas temáticas já tenham sido discutidas por outros autores, a leitura prigoginiana traz um diferencial importante, que é o seu respaldo na Nova Aliança feita entre o homem e a natureza. Essa Nova Aliança exige uma reconstrução das leis que governam o universo e propõe uma nova e ousada leitura do mundo. É neste contexto que Prigogine emerge como um autêntico filósofo da química! Esta pesquisa, ainda que exploratória, sugere novas demandas de investigações ao explicitar a importância do referencial prigoginiano para a consolidação de um campo filosófico específico para a química. A adoção das prerrogativas do pensamento-Prigogine, com sua consistência e irreverência, pode possibilitar, aos autores que defendem a consolidação da filosofia da química, níveis mais sofisticados em suas reflexões e proposições. Tal cenário contribuí significativamente para o fortalecimento dos pilares que norteiam o ensino de química.

Agradecimentos

Referências

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