Autores

Lacerda, A.F. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA) ; Comar Junior, M. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA) ; Marques, D.M. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA)

Resumo

Tendo em vista a crise do ensino de ciências, dada pela falta de contextualização e interdisciplinaridade dos conteúdos, o presente trabalho tem como objetivo construir uma proposta pedagógica para o ensino de química que contemple aspectos científicos, históricos e filosóficos. Para isso, foi utilizado como temática a alquimia, de forma que, além de permitir a interdisciplinaridade, funcionasse também como estratégia mediativa a fim de facilitar o interesse, acesso e entendimento dos/das discentes. Como resultado, foi construída uma proposta pedagógica para o ensino de química no Ensino Médio que visa mobilizar conhecimentos filosóficos e históricos, humanizar e aproximar o conhecimento científico dos/das discentes, e trazer referências não eurocêntricas de produção de conhecimento.

Palavras chaves

Alquimia; Interdisciplinaridade; Proposta pedagógica

Introdução

A química é o ramo das Ciências que estuda a composição, energia, estrutura, propriedades e transformações da matéria, cujo desenvolvimento não foi resultado somente de observações e constatações empíricas isoladas, mas em confluência com contextos históricos, sociais, políticos, culturais, religiosos, filosóficos e tecnológicos. Esses fatos não científicos contribuíram para a elaboração de teorias e especulações que, posteriormente geraram estudos para a construção dos conhecimentos científicos atuais. Sendo assim, é de grande importância a abordagem desses aspectos constitutivos da ciência no estudo da química como fundamento para seu aprendizado. Matthew discute a crescente crise do ensino de Ciências, visualizada não só pela evasão de alunos e de professores das salas de aula, como, também, pelos dados alarmantes sobre o analfabetismo científico dos discentes nas interpretações da Ciência (MATTHEWS, 1995). Esse analfabetismo se dá pela falta da contextualização e interdisciplinaridades entre as informações cientificas químicas ensinadas e a parte histórica e filosófica por trás desses conteúdos. A falta de interesse nos aspectos filosóficos da química, pelos químicos e educadores em química, é correlacionada com a falta de interesse que esses profissionais, comparados com outros cientistas e suas respectivas áreas de estudo, apresentam na história da química – uma situação que é refletida e perpetuada pelo predomínio de um ensino anti-histórico da química (ERDURAN, 2012)(GOOD, 1999). De acordo com Matthews (1995), a Filosofia da Ciência, a História da Ciência e a Sociologia da Ciência humanizam o conhecimento científico e, desta forma, influenciam na motivação dos alunos, propiciam um melhor entendimento dos conceitos científicos e como foram desenvolvidos, superam a falta de significado de fórmulas e equações, além de promover um aperfeiçoamento na formação dos professores ao fornecer uma visão mais ampla e profunda da Ciência que ensinam (MATTHEWS, 1995). Tendo isso em vista, o presente trabalho tem como objetivo construir uma proposta pedagógica para o ensino de Química que dialogue com saberes interdisciplinares de Filosofia e História da ciência, para ser aplicada no Ensino Médio. Para isso, o tema selecionado foi a Alquimia, o qual permite que conteúdos referentes à Filosofia e História sejam abordados juntamente com conteúdos químicos.

Material e métodos

Para a construção da proposta pedagógica, foi feito, primeiramente, um estudo bibliográfico acerca da Alquimia, tanto em livros quanto em artigo, fazendo o recorte necessário para que fosse construída uma introdução de explicação da temática capaz de abordar sua pluralidade de manifestações e sua relação com a Filosofia e a História da Ciência. Essa introdução tinha como objetivo trazer informações básicas e breves da Alquimia, explorando seus elementos históricos e filosóficos, e mostrar como se aproximam e se diferem da prática científica moderna. Além disso, visto que referências alquímicas foram retratadas em diversas produções culturais populares e recentes – como a menção à Pedra Filosofal, na sequência de livros e filmes de Harry Potter –, a introdução sobre a alquimia também visa funcionar como uma estratégia mediativa para facilitar o acesso, o interesse e o entendimento do conteúdo químico pela/o estudante. Segundo Masetto (2000), pode-se entender como mediação pedagógica a atitude docente incentivadora ou motivadora da aprendizagem. Para Franciosi, Medeiros e Colla (2003), a/o discente mediador é aquele que busca movimentar o pensamento, propor situações e atividades e incitar os interesses discentes. Com essa abordagem mediativa, espera-se também recusar e subverter a educação bancária – que considera a/o discente apenas como um banco, completamente passivo, no qual o conhecimento será apenas depositado – tão criticada por Paulo Freire. De acordo com o autor, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p. 92). Para prosseguir com a proposta pedagógica, foi feito um levantamento bibliográfico de trabalhos que propuseram uma “tradução química” à experimentos alquímicos, selecionando qual conteúdo seria mais pertinente para a proposta pedagógica. Por fim, após essa seleção, foi sugerido uma sequência de conteúdos químico que podem ser abordados dentro de uma temática específica: ligação iônica. A proposta pedagógica foi pensada para aplicação no ensino de química no Ensino Médio, mas pode ser adaptada para o ensino superior.

Resultado e discussão

A execução da proposta pedagógica pode ser dividida em quatro partes: (1) uma introdução sobre a alquimia; (2) uma introdução sobre o recorte alquímico que será utilizado para introduzir conceitos químicos e (3) introdução dos conceitos químicos escolhidos. 1. Nessa parte, a intenção é que seja introduzido informações básicas e breves sobre a Alquimia. Para maior interação com a classe, pode-se iniciar questionando os/as discentes o que acham que é a Alquimia, onde surgiu, qual sua relação com a Química. O texto abaixo pode ser utilizado como guia para a introdução do conteúdo introdutório. O interesse e curiosidade dos seres humanos pelo mundo material e suas transformações são observados desde muito tempo nas indagações filosóficas – e suas ideias especulativas – em diferentes civilizações antigas. Com o passar dos anos, esse interesse na natureza e na matéria, mantido desde então, adotou a forma de uma ciência experimental: a alquimia (READ, 1995). Geralmente associada a uma prática antiga que visava a transmutação de metais em ouro, a alquimia, na verdade, compreende uma. variedade de práticas – como a espargiria e a aplicação na medicina – e a intensa conexão entre o caráter filosófico – metafísico ou físico – e as práticas experimentais, características da ciência moderna ocidental (REDGROVE, 1922). Por mais de mil anos, a alquimia foi o paradigma de estudo teórico e prático do mundo material e suas transformações e se encontrou presente em diversas culturas, sendo praticada de diferentes formas e vertentes, como a alquimia chinesa, egípcia, persa, árabe e ocidental (BORGES et al, 2020). Dentre essas diferentes vertentes, duas abordagens principais são encontradas: uma mais técnica que se preocupava mais com o estudo experimental e com os resultados práticos e a outra mais mística ou esotérica, cujo foco era relacionar o mundo material com o mundo espiritual (BORGES et al, 2020). No segundo caso, pode-se dizer que os alquimistas almejavam demonstrar experimentalmente no mundo material, por meio de práticas rigidamente sistematizadas de transformação da matéria, a validade de um ponto de vista filosófico do Cosmos (REDGROVE, 1922). No entanto, ambas as abordagens exerceram um papel fundamental no nascimento de várias ciências futuras na idade moderna, em especial a Química – que também se dedica ao estudo da matéria e suas transformações (BORGES et al, 2020) (READ, 1995). Não é possível afirmar a data e local de origem exatos da alquimia, mas há indícios que apontam para o Egito e para a Arábia – o nome Khem é o nome antigo do Egito e Al é um artigo definido arábico (READ, 1995). Além disso, evidências nos mostram que os egípcios há muitos anos já eram detentores de diversos conhecimentos práticos de transformação da matéria, como a metalurgia (READ, 1995) (FONSECA, 2012). Nesse sentido, o ensino de conhecimentos alquímicos exalta os conhecimentos científicos de diferentes civilizações e culturas que foram intercambiados entre si. Esse movimento ajuda a romper com eurocentrismo científico e epistêmico e considerar diferentes povos como produtores de conhecimento. De acordo com Fonseca (2012), as culturas e ciências africanas tiveram uma grande contribuição para a construção das civilizações ocidentais europeias, sendo a África possivelmente o berço da primeira revolução tecnológica da humanidade (FONSECA, 2012). Desta forma, o ensino da alquimia também contribui para o cumprimento da Lei 10.639/03 e para a formação científica mais ampla e consciente. 2. Após a breve introdução da Alquimia para os discentes, será introduzido uma contextualização sobre o sal amoníaco, substância química selecionada para trabalhar mais diretamente os conceitos químicos. O sal amoníaco – cloreto de amônio ou NH4Cl – é bastante relatado na alquimia árabe devido a sua propriedade de colorir e, em alguns casos, dissolver metais. Foi bastante utilizado devido à descoberta de sua produção por meio da destilação de algumas substâncias animais e vegetais. Era usado como ingrediente em elixires médicos, além de ser essencial para a preparação da pedra filosofal, substância capaz de transformar qualquer metal inferior em ouro. Há frequentes menções de que o sal amoníaco era um material importado do Egito, produzido por uma destilação de urina de camelos. Outras evidencias sugerem que o sal amoníaco era produzido no templo de Amon, no deserto da Líbia no Egito antigo, pela fuligem, o produto contendo o sal foi chamado de Sal de Amon e, depois, sal amoníaco. Os sacerdotes queimavam esterco de camelo e o sal amoníaco formava cristais brancos fuligem nas paredes do templo que subiam pela fuligem (SUTTON Et al, 2008) (CECON, 2012)( MULTHAUF, 1965). O sal amoníaco, ao ser adicionado em água, se dissocia em NH4+ e Cl-, em seguida, o NH4+ reage com a água formando gás amônia (NH3). Essa reação é endotérmica, isto é, absorve calor. NH4Cl → NH4+ + Cl- NH4+ + H2O ⇌ NH3 + H3O+ 3. Com a introdução geral sobre a alquimia e a introdução sobre o recorte alquímico – o sal amoníaco –, as possibilidades de conteúdos químicos que podem ser abordados são diversas. Nessa proposta pedagógica, a sugestão é que sejam trabalhados conteúdos de ligação iônica seguindo os seguintes tópicos: • Íons, Cátions e Ânions; • Forças Eletroestáticas na ligação iônica e formação de compostos iônicos; • Características dos compostos iônicos: altos pontos de fusão e ebulição, sólidos, duros e quebradiços e solubilizam-se facilmente em solventes polares.

Conclusões

O presente trabalho tem como fundamento a defesa de uma educação libertária, em que os/as discentes desenvolvam a capacidade de pensar ativamente e relacionar conteúdos da sua realidade e dia-a-dia com os conteúdos acadêmicos. Assim, essa proposta pedagógica demonstra como a possibilidade de um ensino de Química de forma mais ampla, interessante, interdisciplinar e ativa, rejeitando a visão tradicional – e bancária, como afirma Paulo Freire –, extremamente presente no usual ensino anti-histórico de disciplinas científicas. Assim, ao relacionar conteúdos químicos com filosóficos e históricos, a proposta pedagógica humaniza e aproxima o conhecimento científico dos/das discentes, além de ajuda a romper com a visão eurocêntrica solidificada de que apenas a Europa, berço da ciência moderna, é produtora de conhecimento.

Agradecimentos

À Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e aos órgãos de fomento FAPEMIG, CNPq e CAPES.

Referências

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FONSECA, Dagoberto José. A história, o africano e o afro-brasileiro. In: Caderno de formação: formação de professores didática dos conteúdos. Universidade Estadual Paulista. Pró-Reitoria de Graduação, Universidade Virtual do Estado de São Paulo. São Paulo: Cultura Acadêmica, v. 9, 2012.

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MULTHAUF, R. P. Sal Ammoniac: A Case History in Industrialization. Technology and Culture, 6(4), 569, 1965.

READ, J., From Alchemy to Chemistry. G. Bell, London (reprinted 1995, Dover Publications, New York), 1957

REDGROOVE, H., Alchemy: Ancient and Modern. London: William Rider and Son, 1922.

SUTTON, M. A., ERISMAN, J. W., DENTENER, F., & MÖLLER, D. Ammonia in the environment: From ancient times to the present. Environmental Pollution, 156(3), 583–604, 2008.