Autores

Moreno, N.C.A. (UFF/PPECN) ; Messeder, J.C. (IFRJ-NILÓPOLIS/UFF-PPECN)

Resumo

O presente trabalho expõe reflexões acerca das contribuições de uma aula-passeio, aliada aos aspectos sociocientíficos, para promover discussões étnico-raciais a partir da temática “filtros solares” em aulas de Química da rede pública estadual do Rio de Janeiro. As etapas da aula-passeio realizada foram fundamentadas nos Três Momentos Pedagógicos, e essa proposta permitiu uma articulação de aspectos sociocientíficos ao conhecimento químico previsto nessa etapa da educação básica. A questão racial abordada contribui para o estabelecimento de uma educação antirracista prevista na Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003). O enfoque adotado promove um ensino no qual o aluno protagoniza o processo de aprendizagem, além de participar ativamente de discussões pertinentes fora dos limites físicos da escola.

Palavras chaves

Ensino de Química ; Aulas-passeio; Educação antirracista

Introdução

A fragmentação presente no ensino de Química pode, em alguns momentos, dificultar a compreensão de conceitos. Cachapuz, Praia e Jorge (2002) afirmam que há uma desconexão entre a Ciência presente nos currículos e o mundo real. Um rompimento com as fronteiras das disciplinas faz-se então necessário para a elaboração de um conhecimento globalizado (GADOTTI; ROMÃO, 2004). Cardoso (2014) contribui, ao afirmar que há um enriquecimento do saber quando diversos enfoques ou abordagens sociais são trazidos para a sala de aula. Com isso, a aula-passeio, recurso pedagógico idealizado por Celestin Freinet (1896-1966), é capaz de transcender os muros da escola para aliar conhecimento e vivência para os estudantes de diferentes níveis escolares. A proposta pedagógica de Freinet, baseada na Pedagogia para a Cooperação, é alicerçada no respeito às diferenças, na valorização e participação de diversos contextos sociais, no enfrentamento ao racismo, assim como na formação do pensamento crítico e reflexivo (IMBERNÓN, 2012). Freinet (1975) declara que as aulas-passeio visam promover o interesse e motivação dos estudantes por diferentes atividades escolares. Dessa forma, alguns conteúdos podem ser desenvolvidos de modo mais descontraído e associados a espaços do entorno da escola. Com essa fundamentação, o presente trabalho buscou aliar o recurso pedagógico da aula-passeio, articulado a aspectos sociocientíficos, para discutir questões raciais envolvendo conhecimentos de Química, Física e Geografia, além de refletir acerca de aspectos midiáticos que envolvem a saúde das pessoas negras, e com isso, promover uma prática antirracista na educação básica.

Material e métodos

A atividade pedagógica contou com a participação de estudantes da 2ª série do Ensino Médio, da rede pública do Rio de Janeiro. A aula-passeio ocorreu na Praia do Flamengo (próxima ao colégio), na qual o grupo de alunos foi acompanhado da professora regente e de uma professora auxiliar, responsável em realizar o registro de fotos e vídeos da atividade. A preparação para a aula-passeio baseou- se na proposta dos Três Momentos Pedagógicos - 3MP (DELIZOICOV; ANGOTTI, 2000), representadas na Figura 1. O Primeiro Momento iniciou-se no espaço escolar, a partir de uma roda de conversa com os alunos, com discussões sobre o conhecimento científico que pode ser observado no espaço físico da praia. Foram feitas perguntas como: “Vocês acham que existe relação entre Química e a praia?” Essa etapa continuou na praia, com a professora conduzindo a roda de conversa de modo que a discussão gerasse a problematização da questão: utilização, ou não, de filtros solares por pessoas negras. No Segundo Momento Pedagógico a professora fez uma apresentação e articulação de conceitos químicos e físicos numa atividade dialogada com os estudantes, em que eles completaram um esquema conectando imagens exibidas aos diferentes assuntos abordados. No Terceiro Momento Pedagógico, realizou-se uma atividade em sala de aula (após a aula-passeio) com o intuito de avaliar o impacto da atividade, quais conceitos foram relevantes e ainda se os alunos foram capazes de articular os assuntos abordados com a temática sociocientífica. Aconteceu ainda uma roda de conversa com os estudantes para que eles pudessem expor verbalmente suas impressões sobre a atividade realizada e discutissem os assuntos estudados na aula-passeio (radiação ultravioleta, filtro solar, racismo presente nas propagandas etc.).

Resultado e discussão

Na etapa inicial, a professora iniciou a aula perguntando sobre assuntos que pudessem ser relacionados à Química e ao ambiente da praia. As palavras mencionadas nas respostas foram: ar, areia, sol, água, pedra, mudança de tempo. Fez-se uso, nesse momento, de diversos questionamentos e dúvidas, ao invés de respostas e explicações. A professora questionou os estudantes acerca da importância de se proteger da exposição aos raios solares ultravioletas. No Segundo Momento Pedagógico, a professora exibiu imagens de busca em site de pesquisa ao se digitar "filtro solar". Observou-se que os alunos conseguiram perceber o racismo presente nas propagandas e a possibilidade de impacto disso no cuidado de pessoas negras (diálogos apresentados na Figura 2). A partir das falas dos estudantes é possível verificar o impacto da falta de representatividade nas propagandas, o que pode acabar colaborando para a diminuição do cuidado com a pele por parte de pessoas de pele negra. Conforme Eid e Alchorne (2011), pacientes negros, apesar de terem menores riscos de desenvolvimento de câncer de pele, acabam se deparando com maior letalidade e morbidade. Isso pode ser atribuído ao diagnóstico tardio, já na fase avançada da doença, que é reflexo da crença de que peles negras estão protegidas do câncer de pele. Notou-se no Terceiro Momento Pedagógico, uma ampla discussão entre os estudantes acerca da temática dos filtros solares, além da articulação com conhecimentos científicos curriculares relevantes, em que eles agregaram informações e conhecimentos sobre o assunto abordado a fim de enriquecer e propor soluções para a problematização inicial (MARENGÃO, 2012). Diante disso, foi possível evidenciar as potencialidades que uma aula-passeio, aliada aos aspectos sociocientíficos, é capaz de promover.

Figura 1: Quadro com etapas da aula-passeio

Etapas dos 3MP utilizados na atividade. Fonte: arquivo de pesquisa.

Figura 2: Diálogos sobre questões raciais.

Percepções sobre o racismo presente nas propagandas de filtros solares. Fonte: arquivo de pesquisa.

Conclusões

A atividade discutida mostrou que a abordagem de aspectos sociocientíficos pode ser um aliado importante de um ensino menos conteudista e mais articulado com o mundo real. Aliou-se a essa perspectiva o recurso pedagógico da aula-passeio de Freinet, uma vez que se acredita que a aprendizagem pode, e deve, ocorrer em qualquer espaço. Diante da temática dos filtros solares, e almejando sempre um ensino interdisciplinar, foi possível problematizar a questão da ausência de representatividade negra nas propagandas de filtro solar impactando a não utilização dos filtros solares por pessoas negras.

Agradecimentos

Ao Colégio Estadual Amaro Cavalcanti pelo apoio e incentivo para a realização da aula-passeio, em especial aos alunos da turma 2012 pela participação e comprometimento com a proposta.

Referências

BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Diário Oficial da União. 10 jan. 2003.

CACHAPUZ, A. F., PRAIA, J.; JORGE, M. Ciência, Educação em Ciência e Ensino de Ciências (Temas de Investigação, 26), Ministério da Educação, Lisboa, 2002. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1612013/mod_resource/content/4/EPP.pdf. Acesso em julho de 2022.

CARDOSO, K. K. Interdisciplinaridade no Ensino de Química: uma proposta de ação integrada envolvendo estudos sobre Alimentos. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de Ciências Exatas) – Centro Universitário Univates, 2014. Disponível em: KellyKarineCardoso.pdf (univates.br). Acesso em julho de 2022.

DELIZOICOV, D; ANGOTTI, J. A. Metodologia do Ensino de Ciências. São Paulo: Cortez, 2000.

EID, R. T.; ALCHORNE, M. M. A. Câncer na pela negra, Rev. Bras. Clin. Med. São Paulo, nov-dez; 9 (6), 2011. Disponível em: a2555.pdf (bvs.br). Acesso em julho de 2022.

FREINET, C. As técnicas de Freinet da Escola Moderna. Lisboa: Estampa, 1975.
GADOTTI, M.; ROMÃO, J. E. Autonomia da Escola. 6. ed. São Paulo: Cortez, (Guia da escola cidadã) v.1, 2004.

IMBERNÓN, F. Pedagogia Freinet: a atualidade das invariantes pedagógicas. Porto Alegre: Penso, 2012.

MARENGÃO, L. S. L. Os Três Momentos Pedagógicos e a elaboração de problemas Física pelos estudantes. Dissertação do Programa de Mestrado de Educação em Ciências e Matemática, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012. Disponível em: Dissertacao Leonardo S L Marengao.pdf (ufg.br). Acesso em julho de 2022.